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quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Cigarra e Formiga: (des)construindo Esopo

Seria a primeira vez que ela enfrentaria o inverno.

Pelo pouco que sabia das lendas e fábulas, sua tranquilidade logo teria fim. Há centenas de anos seus ascendentes sofreram com a má fama de desocupados e desprecavidos. Foram humilhados por todas as espécies de animais. Sua fama era ainda pior do que a da Preguiça. Sorte da Preguiça. Ela sequer ficava acordada para ouvir as fofocas a seu respeito. E mesmo quando acordasse não se daria o trabalho de fazê-lo.

Ao longo de sua curta vida ainda não entendera de onde vinha todo o mérito que insistiam em atribuir a sua vizinha.

Não que tivesse algo contra ela; pelo contrário. De certo modo, admirava sua força. Mas não a invejava, de modo algum. Para que desejaria uma vida como aquela? A pobre submissa aos níveis hierárquicos de sua espécie sequer dispunha de asas que a pudessem levar para longe de tamanho stress. 

Não havia porque invejá-la. Salvo pelo fato de que naquele momento, provavelmente, o estoque de alimentos de sua vizinha fosse maior do que o seu. A verdade é que não havia estoque nenhum em seu refúgio de inverno.

Naquele momento ela via duas opções: podia submeter-se ao ridículo como seus antepassados e mendigar alimentos, sabendo que correria o risco de ouvir a clássica frase repetida por Esopo, La Fontaine e milhões de professores de escolas infantis por todo o mundo - Cantaste? Pois agora, que dance!" -, ou poderia morrer de fome. Seu frágil sistema digestivo soou mais forte que todo seu orgulho, e ela simplesmente foi tentar a sorte.

Seguindo a tradição, contou a vizinha sobre seu atual estado de desgraça. Lastimou sua má sorte, prometeu-lhe devolver tudo o que comesse com juros e correções monetárias, embora sequer soubesse o que significava aquela expressão.

A vizinha a fitava com seus olhos gigantes e um profundo pesar. Via-se que estava com olheiras profundas. Embora suas pernas parecessem fortes, seu triste semblante era o retrato de um avançado estado depressivo.

Somente aquele dia perdera as contas de quantas vezes quase fora esmagada. Perdera o apetite, o sono e o ânimo. 

- Pode comer o que quiser.

Por alguns instantes a Cigarra pensara que traduzira de forma errada o Feromonês. Mas ela estudara por longos dias aquele estranho idioma da vizinha, e aquela mensagem só podia significar aquilo mesmo.

Arriscou perguntar:

- O que posso oferecer em troca?

- Cante.

A Cigarra até poderia ter questionado aquela intrigante troca, mas se aquietou. Fez sua refeição e, quando se deu por satisfeita, fez sua pequena apresentação para a vizinha. 

O som da música a capella ecoou pela casa da Formiga. Era a primeira vez que ela sentia a música a invadir de forma tão plena. Seu corpo vibrava a cada nota aguda que a Cigarra entoava. Nunca a Formiga tivera tamanha satisfação.

Ela podia morrer naquele instante, que toda a sua existência teria valido a pena.

Quando a Cigarra se calou, a vizinha permaneceu paralisada por alguns longos segundos. Ambas sentiam-se   emocionadas demais para fazerem comentários. Sem cerimônia, a Cigarra voltou para seu recinto.

No dia seguinte, no outro, e enquanto durou o inverno, a Cigarra ao término do dia visitava a vizinha e cantava para ela. Enfim, alguém reconhecera sua arte.