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sábado, 30 de novembro de 2013

Mixofobia

Ela não estava preparada para o grande dia.

Durante os últimos anos acordava todos os dias pensando em como seria sua vida depois que, finalmente, saísse de casa para viver com um desconhecido. Ela sabia que a chance de erro era inexistente, de acordo com a grande mídia. Desde a grande revolução, todos eram felizes para sempre em seus relacionamentos indestrutíveis.

Tentava imaginar como poderia ser antes da revolução, quando todos eram obrigados a testar suas vidas com pessoas incompatíveis. Como conseguiam sobreviver? Claro, havia aquilo que eles chamavam de divórcio mas... E o sofrimento? E a dor?

Ela era muito sortuda por viver em outros tempos.

Há um ano completara a idade mínima para cadastrar-se no banco de dados mundial. Estava apreensiva, morria de medo que algo desse errado. Tinha que ser franca e colocar cada detalhe que lhe era questionado: todas as características físicas, todos os gostos e desgostos. O questionário era muito rigoroso. Se bem preenchido, não havia porque temer.

Poucos meses depois, recebera a notícia. A total compatibilidade de perfis era garantida. Bastariam mais alguns meses para organizar sua realocação, já que ela teria de viver do outro lado do planeta. Não haveria nenhum problema quanto a culturas ou línguas diferentes: tudo isso era passado. Naqueles novos tempos padronizados, não havia o menor espaço para diversidades.

Quando vira a fotografia do futuro companheiro com quem passaria o resto da vida, respirou aliviada. Era como se ela própria o tivesse desenhado. Recriminou-se por ter imaginado em algum momento que sua aparência poderia desagrada-la.

Mas ali, as vésperas do dia em que assinariam os contratos de união, sentia-se angustiada sem saber porque.

Passaram-se alguns segundos até dar-se conta de que o telefone tocava. Aquilo era estranho. Além de seus pais e da empresa,  não se comunicava com ninguém por voz. Tudo era transmitido pela rede.

- Pois não?

- Ei! Oi! Olhe, não assine nada amanhã! - a voz era rouca e desconhecida. Como alguém descobrira seu número? Como alguém conseguira burlar os sistemas de restrição para contatá-la? - Isso tudo é uma grande farsa! Não existe jeito de tranformar gente em número! Essa história de compatibilidade é mentira! Essa mixofobia que causou a revolução é doentia! Ser diferente não é ruim e...

Ela ouviu um estalo, e depois tudo era silêncio.

Nervosa, não sabia o que fazer. O que podia significar tudo aquilo? De todas as palavras, uma ficara ressoando em sua cabeça: mixofobia. Mistura,  medo. Medo de mistura? Seria mesmo mentira o que a grande mídia sempre defendera? Que os padrões deveriam ser preservados? Que o diferente trazia medo e sofrimento?

Passou a noite em claro, refletindo. Chegou, enfim, o momento da assinatura dos papéis.

Ela se deparou com seu futuro companheiro. Era a primeira vez que o via pessoalmente. Ao contrário da imagem que vira meses atrás, o jovem não estava sorrindo.

De acordo com as regras estabelecidas, era ele quem deveria assinar primeiro. Escreveu algumas palavras no papel timbrado e, segurando a caneta com força, quebrou-a ao meio.

- Desculpe. Eu não posso.

Mal terminara de dizer, um vão abriu-se sob seus pés, fazendo-o desaparecer antes que ela pudesse reagir. O que estava acontecendo?

Antes que algo mais pudesse lhe acontecer, tomou o papel nas mãos. No local indicado para a assinatura, conseguiu ler os símbolos tremidos.

"Não há compatibilidade humana".

Aquilo era suficiente para que sua mente se abrisse. Ela entendeu, enfim, o quão absurdo era tudo aquilo. Tinha uma prova concreta de que a grande mídia não era a verdade.

Pela primeira vez, não teve medo.

domingo, 28 de julho de 2013

Pílula do esquecimento

Não era a primeira vez que ele visitava aquele lugar, mas com tanta mudança, era como se fosse. 

A última vez que entrara em uma drogaria fora antes da Grande Revolução, dois meses atrás. O ambiente que antes mais parecia uma ala de hospital, com seus funcionários de roupas brancas e limpas, hoje mais parecia um botequim. Desde que o Comando pela Ordem assumiu o poder, era extremamente proibido que um civil qualquer vestisse roupas brancas. 

Ele seguiu até o balcão, relutante. O senhor que estava atrás do balcão parecia não fazer a barba há dias. Isso o assustava. Sabia que em algumas cidades os Organizadores prendiam qualquer um que fosse suspeito. A barba era, com certeza, um claro traço de rebeldia.

- Preciso de três pílulas - cuspiu as palavras de uma vez, pulando qualquer saudação amistosa. Estendeu os cartões que retirara de sua caixa de correspondências pela manhã.

O velho fitou-o com uma expressão enojada, mas pegou os papéis de sua mão. O Comando pela Ordem adoraria que todos tivessem acesso à pílula, mas a quantidade produzida era limitada. Os Organizadores sabiam que as prisões eram por si só ótimas ferramentas de controle, mas por alguma razão que nem mesmo os mais poderosos cérebros da Ordem conseguiam compreender, alguns civis não a temiam. Sim, eles sabiam que era muita benevolência oferecer-lhes a pílula como forma de sobrevivência... Mas era realmente necessário que, aos olhos dos outros países membros, fossem respeitados esses mínimos detalhes contratuais.

Ele viu o velho levantar e ir buscar as pílulas no fundo da loja. Aproveitou para observar o quanto tudo parecia abandonado. Drogarias como aquela só vendiam suplementos. A última vez que entrara ali fora para comprar remédios para sua avó, a pessoa que mais amava. Com a Revolução, tudo fora confiscado pela Ordem. Para conseguir os remédios era necessário pagar três vezes mais. Os remédios eram entregues em casa. Da última vez que fizera um pedido, um mês atrás, os remédios não chegaram. Os Organizadores enviaram-lhe uma notificação, dizendo que a entrega fora roubada por um grupo de rebeldes contrabandistas. O dinheiro não seria devolvido. Uma semana depois, a avó não conseguiu resistir a falta de medicamentos e morreu, em casa.

O velho voltou trazendo três cartelas pequenas em  uma das mãos e, com a outra, pegou um caderno velho sem pautas.

- Assine.

Assinou o nome com dificuldade. Há tempos não escrevia nada.

Antes de fechar o caderno, o velho tomou o cuidado de certificar-se que fora assinado corretamente. Ao ler o nome do jovem, não conseguiu disfarçar a surpresa. Levantou os olhos para ele, procurando reconhecer de alguma forma os traços que deixara passar. Realmente, não era possível.

- Não pode ser você... A barba! Você a tirou! Foi isso, só pode ser.... Quantas vezes vi seu rosto nas manifestações? Você apareceu em todos os jornais! Mas... como... como você pode...

- Por favor - ele o interrompeu antes que o martírio recomeçasse - me dê as pílulas. Vamos acabar com isso de uma vez.

Os olhos do velho que antes parecia tão taciturno se encheram de lágrimas.

- Você é nossa esperança! Eu imaginei que após o Dia da Queda você tivesse se juntado aos manifestantes que formaram a guerrilha... Não tome a pílula! Não tome!

Quando deu por si, ele saltara o balcão e arrancara as cartelas da mão do velho. Deixou-o deitado no chão da drogaria, chorando como uma criança.

Não esperou chegar em casa. Tomou as três pílulas, todas de uma vez. Sentiu-as cortarem-lhe a garganta, como navalhas. Engasgou, tossiu muitas vezes. Pegou a primeira garrafa que viu na prateleira e bebeu ruidosamente. Sentiu vertigens como nunca antes. Os olhos lacrimejaram, mais do que em todas as vezes que inalara os gases tóxicos das bombas nas manifestações. Tudo ficou muito claro, e era como se a luz queimasse seus olhos. Silêncio.

Atrás do balcão, o velho levantou com dificuldade, trêmulo. Ele sabia, sempre soubera. A pílula do esquecimento tinha efeitos colaterais. Ela matava a esperança.




segunda-feira, 6 de maio de 2013

Defesa

Tive a oportunidade de conhecer alguns discursos de pessoas que expuseram suas opiniões sobre o que achavam das redes sociais e alguns acontecimentos dos últimos dias contribuíram para sustentar meus contra-argumentos a essas linhas de pensamento.

O primeiro caso é de um professor de Química que conheci quando era diretor de uma instituição. Ele confessou que fora citado tempos atrás por um estudante, que fizera-lhe falsas acusações: escrevera publicamente na rede que o diretor era ausente, dentre outras calúnias. Contrariado, o diretor excluiu sua página pessoal da rede e não tornou a incomodar-se com essas críticas que considerava descabidas.

Em outra ocasião li um artigo de uma famosa revista brasileira, em que o escritor criticava a rede criada por Mark Zuck, mostrando seu abomínio pelas mais diversas razões; fosse o fato de que os mortos não tinham suas páginas excluídas pós óbito, fotos de rapazes descamisados e, principalmente, o comércio.

Diante desses e outros argumentos contrários ao uso das redes sociais, me senti tentada a escrever algo em sua defesa.

Para início, me parece claro o poder de unificação das redes sociais. Unificação no que tange o compartilhamento de ideias, histórias, imagens e percepções. Há, incontestavelmente, a quebra de barreiras da tão aclamada individualidade - para nossa alegria. Tempos atrás ser privado, exclusivo, ter suas próprias coisas, ser único, eram mais do que qualidades. Tudo levava ao aumento do consumo, das desigualdades, das distâncias entre as classes. Ora, é sim muito otimismo meu crer que não haja mais esse tipo de ideologia. Mas o que são as redes sociais senão um ambiente onde não há espaço para isso?

Bem, é possível manter-se indivíduo na rede. Pode-se deixar informações restritas a si mesmo, ou aos amigos. Até mesmo eles podem ser "selecionados"! Mas, ao contrário da vida fora da rede, não há espaço para múltiplas personalidades e opiniões contraditórias em um "feed". Talvez haja espaço, mas pouco ânimo para administrar mil e uma...faces.

Já presenciei discussões de reclamantes sobre opiniões, fotos, vídeos e outras "bobagens". Noto que muitas vezes há dificuldade em assimilar que o conteúdo publicado nas redes sociais é nada mais do que uma versão do que temos todo o tempo, em todo lugar. Diante de publicações que de alguma forma desagradam as convicções e opiniões do usuário, tem-se duas alternativas: ignorá-las, excluí-las - quando possível -, ou confrontá-las, comentando o que lhes parecesse incoerente. Eis que, ao tomar esta última posição, o usuário assume um papel transformador, que nem sempre é prazeroso. A menos que suas convicções sejam claras, e que não haja dúvida sobre o que é opinado, a tarefa de convencer e compartilhar conhecimento pode ser desgastante. De forma alguma, porém, desnecessária. Na "pior" das hipóteses, o usuário seria convencido de que pode mudar de opinião... o que não é o fim do mundo.

Este compartilhamento de conhecimento não é visto com bons olhos por muita gente. Embora na teoria a aversão ao fascismo e nazismo prevaleça, o que vemos é que muitas pessoas tem desprezo por uma parte da população que tem acesso às redes sociais e que, finalmente, pode opinar sobre o que é visto e vivido. Como se alguns merecessem usar a rede e expôr seus pensamentos, enquanto outros, não. Provavelmente porque há muito o que ser escondido. Não é preciso esforço para lembrar-se de casos escusos que vieram à tona e tomaram grandes repercussões por conta das redes sociais: políticos com ideias repugnantes, problemas ambientais mascarados, governos e falsos governantes... Claro que os discursos podem ser manipulados, seja dentro ou fora das redes sociais. Mas com tantos usuários diferentes... cada um pode compartilhar - ou não - aquilo que acredita e defende.

Quanto aos exemplos de figuras que tem aversão às redes sociais, fica a dica: se o estudante fez o comentário sobre a ausência do diretor, será - uma hipótese, apenas - que não haveria qualquer razão nisso? E se ao invés de ter excluído o perfil, ele o tivesse respondido? Porque, convenhamos, o fato de ter "saído" da rede não quer dizer que os problemas também deixaram de existir. Não seria mais prudente resolvê-los?

Sobre o famoso articulista... Bem, este caso é mais complicado. Talvez Zuck possa analisar o grande problema que os perfis mortos causam... ou criar uma rede pós mortem, para que os entes queridos sejam para sempre lembrados - só que não. O aspecto comercial a que o articulista se refere está relacionado às empresas que criaram perfis nas redes sociais. Talvez - também, apenas uma hipótese - elas tenham notado, ao contrário do diretor - que interagir com seus clientes por este meio estreita as relações com o consumidor e permite que haja maior confiança; o usuário com certeza optará pela empresa que se preocupa com suas críticas e opiniões.

E sobre os rapazes sem camisa... Bem, suponho que ele também nunca vá a praia. Não sabe o que está perdendo...




domingo, 17 de fevereiro de 2013

Let's talk about madness


Let's talk about madness.


Dostoievsky did it when he wrote "The double" - and just for a close call I am not as crazy as his hero now.

After read this russian drama I went to Wonderland with Lewis Carrol. Wow, that was an amazing experience!

But, unfortunatelly, I had to close the book and come back to my reality.

For a few minutes, while I was browsing on the internet, I saw so many unbelievable news! The Pope resigned, a meteor visits our russian friends, a lot of people kill other ones for any  reason - are there any reason to kill other one? - and many other strange cases.

It is really hard to believe that we are not living in a mad world. It is particulary interesting to see all these people who try to establish "standards of conduct", that imposes what is correct and what is not. Is there a magic recipe? I don't think so.

If it is so good to live on the perfect way of reality, why so many people are destroying the enviroment, killing theirselves, and resigning their worlds?

Maybe it's time to visit Wonderland, Nárnia, or any other fantastic place.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Cigarra e Formiga: (des)construindo Esopo

Seria a primeira vez que ela enfrentaria o inverno.

Pelo pouco que sabia das lendas e fábulas, sua tranquilidade logo teria fim. Há centenas de anos seus ascendentes sofreram com a má fama de desocupados e desprecavidos. Foram humilhados por todas as espécies de animais. Sua fama era ainda pior do que a da Preguiça. Sorte da Preguiça. Ela sequer ficava acordada para ouvir as fofocas a seu respeito. E mesmo quando acordasse não se daria o trabalho de fazê-lo.

Ao longo de sua curta vida ainda não entendera de onde vinha todo o mérito que insistiam em atribuir a sua vizinha.

Não que tivesse algo contra ela; pelo contrário. De certo modo, admirava sua força. Mas não a invejava, de modo algum. Para que desejaria uma vida como aquela? A pobre submissa aos níveis hierárquicos de sua espécie sequer dispunha de asas que a pudessem levar para longe de tamanho stress. 

Não havia porque invejá-la. Salvo pelo fato de que naquele momento, provavelmente, o estoque de alimentos de sua vizinha fosse maior do que o seu. A verdade é que não havia estoque nenhum em seu refúgio de inverno.

Naquele momento ela via duas opções: podia submeter-se ao ridículo como seus antepassados e mendigar alimentos, sabendo que correria o risco de ouvir a clássica frase repetida por Esopo, La Fontaine e milhões de professores de escolas infantis por todo o mundo - Cantaste? Pois agora, que dance!" -, ou poderia morrer de fome. Seu frágil sistema digestivo soou mais forte que todo seu orgulho, e ela simplesmente foi tentar a sorte.

Seguindo a tradição, contou a vizinha sobre seu atual estado de desgraça. Lastimou sua má sorte, prometeu-lhe devolver tudo o que comesse com juros e correções monetárias, embora sequer soubesse o que significava aquela expressão.

A vizinha a fitava com seus olhos gigantes e um profundo pesar. Via-se que estava com olheiras profundas. Embora suas pernas parecessem fortes, seu triste semblante era o retrato de um avançado estado depressivo.

Somente aquele dia perdera as contas de quantas vezes quase fora esmagada. Perdera o apetite, o sono e o ânimo. 

- Pode comer o que quiser.

Por alguns instantes a Cigarra pensara que traduzira de forma errada o Feromonês. Mas ela estudara por longos dias aquele estranho idioma da vizinha, e aquela mensagem só podia significar aquilo mesmo.

Arriscou perguntar:

- O que posso oferecer em troca?

- Cante.

A Cigarra até poderia ter questionado aquela intrigante troca, mas se aquietou. Fez sua refeição e, quando se deu por satisfeita, fez sua pequena apresentação para a vizinha. 

O som da música a capella ecoou pela casa da Formiga. Era a primeira vez que ela sentia a música a invadir de forma tão plena. Seu corpo vibrava a cada nota aguda que a Cigarra entoava. Nunca a Formiga tivera tamanha satisfação.

Ela podia morrer naquele instante, que toda a sua existência teria valido a pena.

Quando a Cigarra se calou, a vizinha permaneceu paralisada por alguns longos segundos. Ambas sentiam-se   emocionadas demais para fazerem comentários. Sem cerimônia, a Cigarra voltou para seu recinto.

No dia seguinte, no outro, e enquanto durou o inverno, a Cigarra ao término do dia visitava a vizinha e cantava para ela. Enfim, alguém reconhecera sua arte.