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domingo, 28 de julho de 2013

Pílula do esquecimento

Não era a primeira vez que ele visitava aquele lugar, mas com tanta mudança, era como se fosse. 

A última vez que entrara em uma drogaria fora antes da Grande Revolução, dois meses atrás. O ambiente que antes mais parecia uma ala de hospital, com seus funcionários de roupas brancas e limpas, hoje mais parecia um botequim. Desde que o Comando pela Ordem assumiu o poder, era extremamente proibido que um civil qualquer vestisse roupas brancas. 

Ele seguiu até o balcão, relutante. O senhor que estava atrás do balcão parecia não fazer a barba há dias. Isso o assustava. Sabia que em algumas cidades os Organizadores prendiam qualquer um que fosse suspeito. A barba era, com certeza, um claro traço de rebeldia.

- Preciso de três pílulas - cuspiu as palavras de uma vez, pulando qualquer saudação amistosa. Estendeu os cartões que retirara de sua caixa de correspondências pela manhã.

O velho fitou-o com uma expressão enojada, mas pegou os papéis de sua mão. O Comando pela Ordem adoraria que todos tivessem acesso à pílula, mas a quantidade produzida era limitada. Os Organizadores sabiam que as prisões eram por si só ótimas ferramentas de controle, mas por alguma razão que nem mesmo os mais poderosos cérebros da Ordem conseguiam compreender, alguns civis não a temiam. Sim, eles sabiam que era muita benevolência oferecer-lhes a pílula como forma de sobrevivência... Mas era realmente necessário que, aos olhos dos outros países membros, fossem respeitados esses mínimos detalhes contratuais.

Ele viu o velho levantar e ir buscar as pílulas no fundo da loja. Aproveitou para observar o quanto tudo parecia abandonado. Drogarias como aquela só vendiam suplementos. A última vez que entrara ali fora para comprar remédios para sua avó, a pessoa que mais amava. Com a Revolução, tudo fora confiscado pela Ordem. Para conseguir os remédios era necessário pagar três vezes mais. Os remédios eram entregues em casa. Da última vez que fizera um pedido, um mês atrás, os remédios não chegaram. Os Organizadores enviaram-lhe uma notificação, dizendo que a entrega fora roubada por um grupo de rebeldes contrabandistas. O dinheiro não seria devolvido. Uma semana depois, a avó não conseguiu resistir a falta de medicamentos e morreu, em casa.

O velho voltou trazendo três cartelas pequenas em  uma das mãos e, com a outra, pegou um caderno velho sem pautas.

- Assine.

Assinou o nome com dificuldade. Há tempos não escrevia nada.

Antes de fechar o caderno, o velho tomou o cuidado de certificar-se que fora assinado corretamente. Ao ler o nome do jovem, não conseguiu disfarçar a surpresa. Levantou os olhos para ele, procurando reconhecer de alguma forma os traços que deixara passar. Realmente, não era possível.

- Não pode ser você... A barba! Você a tirou! Foi isso, só pode ser.... Quantas vezes vi seu rosto nas manifestações? Você apareceu em todos os jornais! Mas... como... como você pode...

- Por favor - ele o interrompeu antes que o martírio recomeçasse - me dê as pílulas. Vamos acabar com isso de uma vez.

Os olhos do velho que antes parecia tão taciturno se encheram de lágrimas.

- Você é nossa esperança! Eu imaginei que após o Dia da Queda você tivesse se juntado aos manifestantes que formaram a guerrilha... Não tome a pílula! Não tome!

Quando deu por si, ele saltara o balcão e arrancara as cartelas da mão do velho. Deixou-o deitado no chão da drogaria, chorando como uma criança.

Não esperou chegar em casa. Tomou as três pílulas, todas de uma vez. Sentiu-as cortarem-lhe a garganta, como navalhas. Engasgou, tossiu muitas vezes. Pegou a primeira garrafa que viu na prateleira e bebeu ruidosamente. Sentiu vertigens como nunca antes. Os olhos lacrimejaram, mais do que em todas as vezes que inalara os gases tóxicos das bombas nas manifestações. Tudo ficou muito claro, e era como se a luz queimasse seus olhos. Silêncio.

Atrás do balcão, o velho levantou com dificuldade, trêmulo. Ele sabia, sempre soubera. A pílula do esquecimento tinha efeitos colaterais. Ela matava a esperança.




segunda-feira, 6 de maio de 2013

Defesa

Tive a oportunidade de conhecer alguns discursos de pessoas que expuseram suas opiniões sobre o que achavam das redes sociais e alguns acontecimentos dos últimos dias contribuíram para sustentar meus contra-argumentos a essas linhas de pensamento.

O primeiro caso é de um professor de Química que conheci quando era diretor de uma instituição. Ele confessou que fora citado tempos atrás por um estudante, que fizera-lhe falsas acusações: escrevera publicamente na rede que o diretor era ausente, dentre outras calúnias. Contrariado, o diretor excluiu sua página pessoal da rede e não tornou a incomodar-se com essas críticas que considerava descabidas.

Em outra ocasião li um artigo de uma famosa revista brasileira, em que o escritor criticava a rede criada por Mark Zuck, mostrando seu abomínio pelas mais diversas razões; fosse o fato de que os mortos não tinham suas páginas excluídas pós óbito, fotos de rapazes descamisados e, principalmente, o comércio.

Diante desses e outros argumentos contrários ao uso das redes sociais, me senti tentada a escrever algo em sua defesa.

Para início, me parece claro o poder de unificação das redes sociais. Unificação no que tange o compartilhamento de ideias, histórias, imagens e percepções. Há, incontestavelmente, a quebra de barreiras da tão aclamada individualidade - para nossa alegria. Tempos atrás ser privado, exclusivo, ter suas próprias coisas, ser único, eram mais do que qualidades. Tudo levava ao aumento do consumo, das desigualdades, das distâncias entre as classes. Ora, é sim muito otimismo meu crer que não haja mais esse tipo de ideologia. Mas o que são as redes sociais senão um ambiente onde não há espaço para isso?

Bem, é possível manter-se indivíduo na rede. Pode-se deixar informações restritas a si mesmo, ou aos amigos. Até mesmo eles podem ser "selecionados"! Mas, ao contrário da vida fora da rede, não há espaço para múltiplas personalidades e opiniões contraditórias em um "feed". Talvez haja espaço, mas pouco ânimo para administrar mil e uma...faces.

Já presenciei discussões de reclamantes sobre opiniões, fotos, vídeos e outras "bobagens". Noto que muitas vezes há dificuldade em assimilar que o conteúdo publicado nas redes sociais é nada mais do que uma versão do que temos todo o tempo, em todo lugar. Diante de publicações que de alguma forma desagradam as convicções e opiniões do usuário, tem-se duas alternativas: ignorá-las, excluí-las - quando possível -, ou confrontá-las, comentando o que lhes parecesse incoerente. Eis que, ao tomar esta última posição, o usuário assume um papel transformador, que nem sempre é prazeroso. A menos que suas convicções sejam claras, e que não haja dúvida sobre o que é opinado, a tarefa de convencer e compartilhar conhecimento pode ser desgastante. De forma alguma, porém, desnecessária. Na "pior" das hipóteses, o usuário seria convencido de que pode mudar de opinião... o que não é o fim do mundo.

Este compartilhamento de conhecimento não é visto com bons olhos por muita gente. Embora na teoria a aversão ao fascismo e nazismo prevaleça, o que vemos é que muitas pessoas tem desprezo por uma parte da população que tem acesso às redes sociais e que, finalmente, pode opinar sobre o que é visto e vivido. Como se alguns merecessem usar a rede e expôr seus pensamentos, enquanto outros, não. Provavelmente porque há muito o que ser escondido. Não é preciso esforço para lembrar-se de casos escusos que vieram à tona e tomaram grandes repercussões por conta das redes sociais: políticos com ideias repugnantes, problemas ambientais mascarados, governos e falsos governantes... Claro que os discursos podem ser manipulados, seja dentro ou fora das redes sociais. Mas com tantos usuários diferentes... cada um pode compartilhar - ou não - aquilo que acredita e defende.

Quanto aos exemplos de figuras que tem aversão às redes sociais, fica a dica: se o estudante fez o comentário sobre a ausência do diretor, será - uma hipótese, apenas - que não haveria qualquer razão nisso? E se ao invés de ter excluído o perfil, ele o tivesse respondido? Porque, convenhamos, o fato de ter "saído" da rede não quer dizer que os problemas também deixaram de existir. Não seria mais prudente resolvê-los?

Sobre o famoso articulista... Bem, este caso é mais complicado. Talvez Zuck possa analisar o grande problema que os perfis mortos causam... ou criar uma rede pós mortem, para que os entes queridos sejam para sempre lembrados - só que não. O aspecto comercial a que o articulista se refere está relacionado às empresas que criaram perfis nas redes sociais. Talvez - também, apenas uma hipótese - elas tenham notado, ao contrário do diretor - que interagir com seus clientes por este meio estreita as relações com o consumidor e permite que haja maior confiança; o usuário com certeza optará pela empresa que se preocupa com suas críticas e opiniões.

E sobre os rapazes sem camisa... Bem, suponho que ele também nunca vá a praia. Não sabe o que está perdendo...




domingo, 17 de fevereiro de 2013

Let's talk about madness


Let's talk about madness.


Dostoievsky did it when he wrote "The double" - and just for a close call I am not as crazy as his hero now.

After read this russian drama I went to Wonderland with Lewis Carrol. Wow, that was an amazing experience!

But, unfortunatelly, I had to close the book and come back to my reality.

For a few minutes, while I was browsing on the internet, I saw so many unbelievable news! The Pope resigned, a meteor visits our russian friends, a lot of people kill other ones for any  reason - are there any reason to kill other one? - and many other strange cases.

It is really hard to believe that we are not living in a mad world. It is particulary interesting to see all these people who try to establish "standards of conduct", that imposes what is correct and what is not. Is there a magic recipe? I don't think so.

If it is so good to live on the perfect way of reality, why so many people are destroying the enviroment, killing theirselves, and resigning their worlds?

Maybe it's time to visit Wonderland, Nárnia, or any other fantastic place.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Cigarra e Formiga: (des)construindo Esopo

Seria a primeira vez que ela enfrentaria o inverno.

Pelo pouco que sabia das lendas e fábulas, sua tranquilidade logo teria fim. Há centenas de anos seus ascendentes sofreram com a má fama de desocupados e desprecavidos. Foram humilhados por todas as espécies de animais. Sua fama era ainda pior do que a da Preguiça. Sorte da Preguiça. Ela sequer ficava acordada para ouvir as fofocas a seu respeito. E mesmo quando acordasse não se daria o trabalho de fazê-lo.

Ao longo de sua curta vida ainda não entendera de onde vinha todo o mérito que insistiam em atribuir a sua vizinha.

Não que tivesse algo contra ela; pelo contrário. De certo modo, admirava sua força. Mas não a invejava, de modo algum. Para que desejaria uma vida como aquela? A pobre submissa aos níveis hierárquicos de sua espécie sequer dispunha de asas que a pudessem levar para longe de tamanho stress. 

Não havia porque invejá-la. Salvo pelo fato de que naquele momento, provavelmente, o estoque de alimentos de sua vizinha fosse maior do que o seu. A verdade é que não havia estoque nenhum em seu refúgio de inverno.

Naquele momento ela via duas opções: podia submeter-se ao ridículo como seus antepassados e mendigar alimentos, sabendo que correria o risco de ouvir a clássica frase repetida por Esopo, La Fontaine e milhões de professores de escolas infantis por todo o mundo - Cantaste? Pois agora, que dance!" -, ou poderia morrer de fome. Seu frágil sistema digestivo soou mais forte que todo seu orgulho, e ela simplesmente foi tentar a sorte.

Seguindo a tradição, contou a vizinha sobre seu atual estado de desgraça. Lastimou sua má sorte, prometeu-lhe devolver tudo o que comesse com juros e correções monetárias, embora sequer soubesse o que significava aquela expressão.

A vizinha a fitava com seus olhos gigantes e um profundo pesar. Via-se que estava com olheiras profundas. Embora suas pernas parecessem fortes, seu triste semblante era o retrato de um avançado estado depressivo.

Somente aquele dia perdera as contas de quantas vezes quase fora esmagada. Perdera o apetite, o sono e o ânimo. 

- Pode comer o que quiser.

Por alguns instantes a Cigarra pensara que traduzira de forma errada o Feromonês. Mas ela estudara por longos dias aquele estranho idioma da vizinha, e aquela mensagem só podia significar aquilo mesmo.

Arriscou perguntar:

- O que posso oferecer em troca?

- Cante.

A Cigarra até poderia ter questionado aquela intrigante troca, mas se aquietou. Fez sua refeição e, quando se deu por satisfeita, fez sua pequena apresentação para a vizinha. 

O som da música a capella ecoou pela casa da Formiga. Era a primeira vez que ela sentia a música a invadir de forma tão plena. Seu corpo vibrava a cada nota aguda que a Cigarra entoava. Nunca a Formiga tivera tamanha satisfação.

Ela podia morrer naquele instante, que toda a sua existência teria valido a pena.

Quando a Cigarra se calou, a vizinha permaneceu paralisada por alguns longos segundos. Ambas sentiam-se   emocionadas demais para fazerem comentários. Sem cerimônia, a Cigarra voltou para seu recinto.

No dia seguinte, no outro, e enquanto durou o inverno, a Cigarra ao término do dia visitava a vizinha e cantava para ela. Enfim, alguém reconhecera sua arte.

sábado, 27 de outubro de 2012

Conto da despedida

Em algum lugar, 25 de outubro de 2012


A minha outrora amada,

Sei que você deve estar surpresa em receber esta carta. Nunca fui bom com as palavras, e sempre tive uma preguiça enorme de escrever. Mas confesso que não vi outra forma de falar-lhe palavras tão duras. Sei que é covardia não olhar em teus olhos para dizer o que tenho de tão urgente, mas não havia outra maneira.

O que tenho para dizer é algo novo, inclusive para mim. Até pouco tempo tinha muitas certezas: sabia que a amava, e que era meu bem mais precioso. Sabia inclusive que sem você seria um vazio sem fim. Mas nos últimos dias um punhado de dúvidas me acometeu de tal forma que agora estou eu aqui, escrevendo-te uma carta de despedida.

Quero deixar claro que o culpado sou eu mesmo. Sei que em momentos de fúria disse palavras horríveis a você, e não é a primeira vez que me tento a abandoná-la. Mas creio que nunca antes tive reais motivos... Sempre fazia questão de colocar a culpa em outras pessoas ou em situações rotineiras. Só agora dei me conta de que o verdadeiro responsável por este fracasso, sou eu mesmo.

Nos últimos dias, descobri fatos importantes sobre mim.

Lembra-se de quando eu defendia a liberdade? Quando dizia que só seriamos felizes quando fossemos livres e sem obrigações? Descobri que estava mentindo para mim mesmo. A verdade é que não suporto a ideia de ver os bandidos fora das prisões, as feras fora das jaulas, os pássaros fora das gaiolas.

Lembra-se de quando lhe disse que jamais bateria em meus filhos? A verdade é que eu mesmo espanquei muitos colegas da escola quando era mais jovem, e me senti muito feliz com isso.

Lembra-se quando lhe disse que o maior mal da nossa mídia era a censura? A verdade é que monitoro cada palavra que meus amigos colocam nas redes sociais, para processá-los ao menor sinal de ataque a minha honra.

Lembra-se quando chorei ao assistir aquele vídeo sobre os campos de concentração nazistas? Quero que saiba que eu tenho vontade de matar aqueles indivíduos com suas músicas escandalosas, que não suporto aqueles apolíticos iletrados, e que muitas vezes antes de dormir já imaginei um mundo perfeito onde não haveria uma parte considerável de pessoas que desagradam minhas preferências. Até sonhei com um mundo perfeito, onde só a imagem da beleza era vista.

Não sei como exatamente me dei conta... Acho que foi durante aquela viagem de trem.

Descobri que eu sou exatamente o oposto do que defendo.

Para falar a verdade, a essa altura não sou mais. Como lhe disse, esta é uma carta de despedida. Durante um dia inteiro tentei mudar, e não consegui. Encurralado, sufoquei-me ante tamanho paradoxo, e aqui me despeço.

Vida, agradeço porquanto tenha durado...



Q.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O dono da ideia

Tudo estava muito quieto. Ele estava deitado ao lado da cama do irmão, que milagrosamente não roncava aquela noite. Já se passava das quatro horas da manhã, e aquela maldita insônia não o deixava dormir de jeito algum.

Ele não conseguia impedir aquele combate de vozes lutando em sua cabeça. Às vezes eram lembranças do que acontecera horas antes, ou até mesmo na semana anterior. De repente, mais alto, ele ouvia a própria voz tentar dominar aquela grande bagunça que se formara em sua cabeça. Voltava ao quarto escuro, e tinha medo que as crises de síndrome do pânico voltassem. Antes que o calor começasse a subir pela sua nuca, e aqueles pensamentos o fizessem acreditar que estava louco, acendeu a luz.

A claridade do ambiente permitiu que seu medo e sua respiração se controlassem. O irmão se revirou em sua cama, mas pareceu não acordar. Melhor assim.

No criado mudo havia uma folha de papel branco rabiscada, mais ainda restava um espaço branco no fim. A gaveta rangiu de velhice quando ele a abriu e tateou em busca de algo com que pudesse escrever.

Faltaram-lhe palavras. Elas eram tão delatoras, que ele achou melhor não escrever nada. Desenhou traços e mais traços, sem notar exatamente que forma construía.

Não sabia ao certo quanto tempo se passara quando a explosão aconteceu. Sim, porque fora como uma grande explosão; tudo se iluminara, e ele podia sentir a força e a energia.

Não era uma ideia qualquer. Era algo inovador, algo incrível, que com certeza o tornaria alguém muito importante. E ele com certeza ficaria milionário com aquela ideia. Mas e se alguém a descobrisse? E se quisessem roubá-la? Não, ele não deixaria. Teria de escondê-la de alguma forma. Mas se a escondesse.... Como saberiam o quão inteligente era seu criador? Como ele ganharia seu dinheiro?

O medo de que o descobrissem dominou-o por completo, e quando ele percebeu, estava prestes a rasgar o papel. Em pânico, desamassou-o. Trêmulo, pegou seu celular sobre a cabeceira e ligou sua câmera. Sim, ele iria tirar uma foto. Teriam que acreditar na data e no horário, saberiam que ele fora o primeiro a ter a grande ideia. E ele seria o dono dela, mais ninguém. Patentearia, caso fosse necessário.

O celular caiu de suas mãos.

- Mas o que é que você está fazendo a essa hora?

O susto não fora maior do que o terror que sentiu ao ver que seu irmão acordara. Como poderia esconder a ideia dele? Ele faria perguntas e mais perguntas.... Irmãos adoram fazer perguntas... E se ele quisesse tomar-lhe a ideia?

Teve que conter-se para não cair aos prantos.

- Que nervosismo é esse? Você viu alguma coisa? Está com medo?

- Não, eu só estava rabiscando. Só rabiscando, para dormir. Queria dormir, mas não consigo.

- O que você está rabiscando? Quero ver.

Ele não lutou, entregou o papel. Não tinha como lutar com ele.

O irmão olhou o papel e seus olhos se iluminaram.

- Que bacana! Onde você viu isso?

- Não vi nada não, nada. Saiu da minha cabeça, a ideia é minha. Eu que fiz, sou o dono dela.

O irmão soltou uma gargalhada assustadora.

- Como assim sua? Ninguém tem ideia nenhuma cara. Olha só, quando você nasceu, já existia muita gente no mundo. Tiveram que te ensinar as coisas, não foi? Se não tivessem te ensinado as coisas, você não ia saber nem falar. Ou você viu isso em algum lugar, ou viu algo parecido.

Ele sentiu raiva, e quase esqueceu-se de seu tamanho para atirar-se contra o irmão. Mas não podia fazê-lo antes de recuperar seu papel.

- Nunca vi nada parecido. Não copiei de ninguém.

- Tudo bem, mas você deve ter se inspirado em alguém, ou alguma coisa. Mas não precisa ficar bravo, isso não quer dizer que tenha menos valor por isso. É bacana de qualquer jeito. Você vai colocar na internet?

- Não. Não vou, não quero que roubem minha ideia.

Mais uma vez aquela gargalhada.

- E quem disse que se roubam ideias? Ideias não são roubadas... ideias são compartilhadas. Pára com isso... Imagina se o cara que inventou o fogo tivesse pensado assim? E a eletricidade? E tudo? A gente não teria História! Seríamos todos animais selvagens... ou não teríamos avançado de forma alguma em relação a tecnologias, ou qualquer outro tipo de coisa...

Por um momento, parecia que havia algum sentido no que o irmão dizia. Mas ainda assim... E se ele estivesse querendo roubá-la, para ficar como todo o dinheiro para si?

- A ideia é minha. Vou patenteá-la. E vou ganhar dinheiro com isso.

Dessa vez, ele não gargalhou.

- Então é isso? Toda essa aflição, por que você quer ganhar dinheiro com sua ideia... Vamos pensar o seguinte. De qualquer forma, para que você ganhe dinheiro com ela, você terá que compartilha-la. Se você compartilhar com alguns poucos milionários, eles até te pagarão por isso. E eles vão usar sua criação como eles quiserem. Podem até matar um monte de gente com isso. Agora, vamos supor que você compartilhe com o mundo inteiro. É provável que alguns tomem seus créditos por sua obra - mas geralmente acabam descobertos. Mas todos terão acesso a sua genialidade, e poderão se beneficiar dela. Se alguns tentaram usá-la para fazer coisas ruins, outros tentarão usá-la para o bem. E isso vai ajudar, de alguma forma, na construção da História! Será que você consegue perceber isso, ou prefere continuar sendo egoísta?

Ele não respondeu. O irmão lhe entregou o papel e virou-se para dormir.

Passou ainda algum tempo olhando para o papel, antes de adormecer. Quando acordou, não encontrou papel algum. Tentou recordar-se de sua ideia, mas nada veio a mente. Buscou encontrar embaixo da cama e dos móveis o papel perdido, mas nada apareceu. Teria sido algum sonho? Ou teria ele enlouquecido como sempre temera?

Acordou o irmão e lhe perguntou sobre o que acontecera. Ele resmungou que não se lembrava de nada, e que devia ser mais um de seus ataques de sonambulismos.

Mas ao invés de irritar-se, o dono da ideia sorriu. Ficou aliviado por não ter que tomar uma decisão tão importante. Vestiu seu uniforme e foi para a escola.

O irmão ficou sentado na cama, e refletiu durante muito tempo. Pegou o papel amarrotado no bolso, e admirou-o. Pensou se fizera o correto... E concluiu que sim. Afinal de contas, seria uma grande frustração para um garoto de sete anos descobrir que a máquina de escrever se tornara um objeto tão obsoleto.




sexta-feira, 20 de abril de 2012

Boicote às farsas

O mais estúpido mal que nos persegue desde muitos anos antes de qualquer referencial de tempo da história da humanidade é, sem dúvida alguma, a farsa.

Sento-me aqui hoje para declarar meu asco a todo e qualquer tipo e nível de farsa. Faço questão de enumerá-las para que elas sejam mais visíveis a nossos olhos míopes... e não digo isso por efetivamente ter a visão turva pela miopia, mas porque se torna cada vez mais nítido o quanto a sociedade de hoje se cega ante fingimentos e ilusões. Já nos trouxe Saramago o "Ensaio sobre a cegueira", para que pudessemos ao menos reconhecer nossa alienação... Hoje venho expôr algumas dessas farsas que tem me aflingido nos últimos dias ou anos... primeiro porque essas semanas por algumas vezes já perdi a voz de tanto repeti-las àqueles que tiveram a paciência de ouvi-las, e também porque tenho uma devoção sem tamanho ao poder da palavra escrita e por sua amplitude, que rompe barreiras temporais ou geográficas.

Muitos começariam por destacar que a pior das farsas é a dos políticos e governantes, que já se tornaram em nosso país o esteriótipo para a figura do malandro desonesto. Não vou defendê-los aqui, e tampouco os atirarei pedras. Mesmo porque, existe farsa pior do que apontar os defeitos e pecados alheios, eximindo a si mesmo de culpa? Sim, os elegemos. Sim, somos nós quem devemos destituí-los.

E o que dizer sobre a farsa da educação? Ora, não é preciso ser mestre ou doutor para saber que o conhecimento é o que move o ser humano, que nossa capacidade de transmitir nossas aprendizagens às gerações futuras é o que nos difere como racionais. Mas o que dizer sobre os falsos sistemas de ensino que alienam os estudantes, ao invés de torná-los críticos? Que os segregam, ao invés de estimulá-los ao convívio social? Que os tornam passivos, ao invés de estimulá-los na busca pela criatividade, pela inovação e pela arte?

O que dizer sobre a farsa dos profissionais? Os falsos professores, que fingem serem educadores? Pior ainda, os falsos estudantes, que simulam um aprendizado inexistente. Mas ainda há quem diga que a verdadeira educação ''vem do berço''. E o que dizer dos falsos progenitores, que fingem educar seus filhos?

Não podemos esquecer também da farsa nas relações cotidianas. O que dizer dos falsos sorrisos? E pior ainda, dos falsos amores? Como não repudiar a farsa dos enamorados que não amam, dos médicos que não curam, dos padres e pastores que fingem fazer pregações, das ONGs cujos presidentes matam elefantes, dos ricos filantropos, dos países ricos com população alienada, ou dos países pobres com população miserável, cujos governos enriquecem as custas da fome e da guerra. Ah, como poderíamos esquecer!

A grande farsa, que nos persegue e nos acompanha ao longo de toda a nossa história. A maior farsa de todas, que todos temem, mas que parecem não reconhecer sua razão de existir. Tivemos a primeira, a segunda, damos nomes e apelidos a elas. Buscamos culpados, protagonistas e vilões. Conseguimos até criar jogos estratégicos que nos tornem capazes (?!) de sobreviver a elas. Quer maior farsa do que criar um cenário grandioso que possa ser palco para que falsos herois - que na verdade são vítimas de uma jogo de interesses políticos e individuais -  possam lutar por um objetivo maior e coletivo, que na realidade não passa de um enorme pretexto para alimentar as bocas famintas de uma minoria necessitada de poder.

Chegamos, enfim, a farsa do capitalismo globalizado. E antes que indaguem, também enumero aqui as farsas dos regimes que fingiram usar os conceitos de Marx. Trago aqui a farsa das mídias compradas, do jornalismo manipulador, dos comentaristas com falsos argumentos. Trago a farsa da censura... E não digo só aquela que conhecemos pelos registros históricos da ditadura, mas também a silenciosa, que nos impede de dizer o que pensamos por medo de sermos coagidos por falsos moralismos.

Diante de tantas farsas, muitos podem ter uma visão pessimista sobre o contexto em que vivemos. Ora, tudo isso está aí, e é real. Mas não está acabado. O tempo não é finito, ele nunca "está acabando". Por mais que a vida de cada um de nós seja limitada, as ações que fazemos hoje podem ter resultados refletidos muito além do que imaginamos. É realmente preciso mudar. Está na hora que acabar com as farsas. E nenhuma delas é magna o suficiente que não possa deixar de existir. E eu não tenho que virar um mártir para contribuir para que isso aconteça. Posso simplesmente deixar de fingir amores que não existem. Posso deixar de sorrir quando não quiser fazê-lo. Posso deixar de comprar um roupa de marca, para deixar de fingir que aquilo me torna alguém melhor. Posso.

E podem dizer que o mundo perfeito nunca vai existir, e que as farsas nunca acabarão. Também podem. Mas eu tenho a ligeira impressão de que a cada momento que uma farsa - por menor que seja - deixa de existir, uma parte do mundo está melhor. E isso já me deixa plenamente satisfeita.